quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Oração natural – Donizete Galvão

Oração natural
Donizete Galvão

Fique atento
ao ritmo,
aos movimentos
do peixe no anzol.
Fique atento
às falas 
das pessoas
que só dizem
o necessário.
Fique atento
aos sulcos
de sal
de sua face.
Fique atento
aos frutos tardios
que pendem
da memória.
Fique atento
às raízes
que se trançam
em seu coração.
Fique atento.
A atenção
é sua forma natural 
de oração.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

The More Loving one/

"The More Loving One"

Looking up at the stars, I know quite well
That, for all they care, I can go to hell,
But on earth indifference is the least
We have to dread from man or beast.

How should we like it were stars to burn
With a passion for us we could not return?
If equal affection cannot be,
Let the more loving one be me.

Admirer as I think I am
Of stars that do not give a damn,
I cannot, now I see them, say
I missed one terribly all day.

Were all stars to disappear or die,
I should learn to look at an empty sky
And feel its total dark sublime,
Though this might take me a little time.

W. H. Auden



terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Título em Branco

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O farol piscava verde. Atravessou. A vista cheia de verdes pontilhados. O bonequinho vivo, mais vivo que ele. Piscava, frenético. O verde pestanejava gentil e comandante: passe. Não exigia, mas advertia instilando culpa. Passe. O vulto de sapatos pretos atravessou a rua.
Lembrou-se que Carla havia sugerido pintar a parede de verde.
E Saulo, o arquiteto, disse que verde pode ser bom, mas é bom ter cuidado na escolha. Pra escolher um verde elegante.
Marcel deixou escapulir a palavra roxo.
Mas roxo? De jeito nenhum.
Estavam certos, Marcel nem entendia o roxo.
No branco-pálido do quarto, foi recebido pelo caramelo-fosco do cão
Os livros espalhados pelo metal esmaltado da mesa
O edredom lilás desgrenhado de sua avó
A madeirinha marrom das estantes e da sapateira, silenciosa como árvores mortas.
No teto, luzinhas chinesas circunscritas de papel em forma de cilindro – também branco. E o quarto continuava pálido, mesmo quando aceso.
Ali era o estilo não-estar. Ignorado pela moda. Nunca sequer esteve em alta ou em baixa.
No sertão imenso, naquela aridez ora fria ora quente do avesso de Marcel, nada excedia os limites além da própria imensidão de pedrinhas. À qual ele não sabia impor freios, encher de caju, vinho, morango.
O quarto, a vida, a rua em que se põe a mão eram um detalhe naquelas brutas lonjuras onde a voz viaja sozinha e limpa por séculos.
E naquele quarto, o violão escondido debaixo de um baú inóspito, o violão esquecido como coisa qualquer. No violão ele um dia entendera as cores.
Na parede não havia sequer manchinha de caneta, marcas de murro ou até risco de um móvel cuja quina arranhara sem querer. O prato de um lado só. A cartola furada que não tinha coelho nem nada, só o outro lado mostrando o lado vazio.
O cãomarelo correu em busca da bolinha cor de rosa, mas, entediado, logo adormeceu em sua caminha rosa encardido, rosa murcha.
Segunda-feira vinha um sofá “kappa” de dois lugares. Reto como um tijolo e pesado como concreto.
Ele teve dúvidas se deveria escolher a cor azul marinho bic ou roxo ipê. Ou cinza-torto? Escolheu preto porque preto não suja.
Essa coisa de cor, esses objetos que não têm linhas retas, mas constelares, que querem dizer? Quando falam entre si?
Ele não entendia o amarelo dos girassóis de sua avó. Que eram um caldeirão de amarelo, eram pólen borrando os cílios, mel besuntando o rosto. Um mar flavescente evaporando abelhas e sol sob o céu adornado de azul império-celeste.
Ou o carmim do batom de Cecília.
Não sabia se achava bonito, se achava feio. Aquela moça, mocinha, naquela vermelhidão toda, acesa. Chama.
As cores não tem cerca. Por isso ele preferia o branco. Branco não relampeja. Branco não tem veia. Branco não sangra. Não passa vergonha. Não exagera. Apenas suja com facilidade, não tem como se esconder.
Ele era, ao menos, um homem quase equilátero, quase sincero.
Atravessou a rua. E olhando para o chão, sempre distraído, naquele cinza-               -cimento de cinzel, a rua petrolínea sendo atravessada por carros pretos, prata e brancos.
O ouvido direito dele ouvindo, o esquerdo abafando.
E os passos tortos, tortinhos, eram a única denúncia – de que havia um violão enfiado em um baú verdimundo.