terça-feira, 16 de março de 2010

Maria Joana

"Não faz feitiço quem não tem um terreiro
Nem batucada quem não tem um pandeiro
Não vive bem quem nunca teve dinheiro
Nem tem casa pra morar
Não cai na roda quem tem perna bamba
Não é de nada quem não é de samba
Não tem valor quem vive de muamba
Pra não ter que trabalhar
Eu vou procurar um jeito de não padecer
Porque eu não vou deixar a vida sem viver


Mas acontece que a Maria Joana
Acha que é pobre, mas nasceu pra bacana
Mora comigo, mesmo assim não me engana
Ela pensa em me deixar
Já decidiu que vai vencer na vida
Saiu de casa toda colorida
Levou dinheiro pra comprar comida
Mas não sei se vai voltar
Eu vou perguntar
Joana, o que aconteceu?
Dinheiro não faz você mais rica do que eu
"

quarta-feira, 10 de março de 2010

Poema em Linha Reta

"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza."

Fernando Pessoa

terça-feira, 9 de março de 2010

Aforismos de um artista que sonha em ser sambista. De verdade.

Saiu despreocupado com o mundaréu de gente nas calçadas.
Devagar e sempre. Ia sempre, o preguiçoso.
Não era malando. Não era trabalhador. Era sambista.
No entanto, o mundo. O mundão, mundão, mundo. Ou rodava no seu umbigo ou em volta do sol.
Ele, pequeno que nem qualquer coisinha.

Chegara à conclusão que
A vida estava sendo boa com ele.
Ele é que não estava sendo bom com a vida.
Ao menos não bom o bastante para atender aos convites dela.

Acreditava em Deus
Mas desconfiava que Deus não acreditava nele.

- Apenas me mande um sinal! Diga-me se eu valho alguma coisa! - Falou com a cabeça fritando debaixo do chapéu, debaixo do sol.

Eram 12 horas da manhã e da tarde. Oliveira precisava comer, tomar banho, beber água.

Desviava o olhar do encardido terno de linho branco . O que sobrara de sua promessa como artista.

Enquanto isso, fora demitido mais uma vez. Mais um empreguinho de merda.

- Tem de botar a cara no mundo!

Mas Oliveira preferia ficar em casa. Nada de depressão. Já não sofria disso. Em casa, porque lá era melhor. Só falava quando queria. Só escutava quando abria as portas. Tinha escolha. Podia pensar.

- Oliveira, Oliveira, demitido novamente!

"Talvez um tapa bem dado cale até os ossos desse sujeito. Deixa eu em paz!"

Demitido do inferno, onde nunca quisera estar. Mas era lá onde ele sempre ia bater - lá, onde as horas não lhe pertenciam.

Liberto, ele sentava e cheirava a beira da ponte. Cheiro bom de rio.

- Vai ter que vender sapato na rua de novo!

"Ah não! Sapato na rua não!"

- Fica tocando essa MERDA! É isso que acaba contigo!
- Não tens opção, Oliveira! Já foi, já é! Tais de passar fome?

"Passar fome..."

Só venderia sapatos se fossem desses bem leves. Desses que cabem no bolso. Oliveira queria voar com eles nos pés.

Ficar ali, sendo profundeza, sentindo, sentindo... Queria fazer samba e não viver vidinha atrás de dinheiro.

- Vai trabalhar, Oliveira!
- Vai TRABALHAR!

- Oli, Oli.. Quando sua mãe acordar não vai saber de nada. Sua história de vida não será permitida, não se preocupe.

"Passou relâmpago aqui.
Quase queimou tudo.
Estou desempregado
Porém, continuo.
A possibilidade é mais óbvia agora"

A vida dele. A vida de Oliveira AINDA era coragem. In vitro.

- Foi tudo tão patético. Até aqui a tua vida, Oliveira. Vida que não vai nem vem.

As usual.

"Vou saltar dessa ponte!"
Não serás!
"Vou soltar desse jogo"
Capaz!

- Os ameríndios. Você, Oliveira, um ameríndio. 0s ameríndios também não tinham valor no que tinham e só ganharam o que não era deles.Se sente assim?
Alguns deles secretamente passaram a desejar a alma de europeus da Europa. Você também, não é, Oliveira?

- Gosta de Champagne?

"A vida não tem agora, porque o agora sou eu e eu não aconteço, não sou verbo nenhum.
Ai sou: espero.
Que meu caso seja levado às instâncias finais do desepejo."

"Estou pobre. Mas queria ficar rico! Talvez sim, secretamente deseje ser um europeu da europa."

- Oliveira, vai sonhar assim lá na PUTA QUE TE PARIU.

"Eu quero era voltar
pro meu
lugar
de origem

coração"

"Apenas sou!
Sapato branco de nuvens!
Samba da velha guarda da Mangueira"

"Estou esquecido do mundo aqui,
Resguardado em mim mesmo"

No entanto, também:

Sobram sementes de uma alvorada

Abelhas perdidas da mesma alcateia

Sobreviventes sem rumo

Iguais a ele. Havia a chance de que Oliveira, indavertidamente, não estivesse navegando só em sua intolerância com o destino. Pessoas como ele também estavam rosnando contra a maré.

"Eu, Oliveira, sambista de primeira? De segunda? De terceira?"

Do samba resta o sapato branco, o terno de linho que, convenhamos, a ninguém convence. Ainda.

- Precisa abrir o bico! É, soltar a voz, homem-passarinho!

"Não sou passarinho, porra! Não vou sair cantando por aí, soltando por ouvidos desavisados tudo o que sou."

- Pois é. Por isso que ninguém te ligou ontem. E nem antes de ontem, nem depois.

- Por que você não bota a cara no mundo? De uma vez! Vai ficar fazendo samba do além até quando? Bota a cara no mundo, Oliveira!